
Acho que é nesse ponto que o meu drama começa. Corri para a rua, liguei para todos os telefones possíveis, mas não consegui falar, nenhum completava a ligação. Tentei ligar para os amigos e nada. A cada minuto a situação só piorava. Depois que descobri que a cidade estava incomunicável, decidi que era hora de ir para casa. Arrumei minha mochila e já estava me direcionando para a saída, quanbo alguém me disse que as estradas estavam interrompidas. Ninguém passava, nem carro nem ônibus nem nada... Nada mesmo. Senti uma vontade de chorar enorme, mas preferi deixar para depois. Com o passar dos dias, minha aflição só aumentava.

Na quinta fiquei no trabalho até a hora do almoço. Foi quando descobri que a 1001 já estava subindo a serra. Peguei minhas coisas e fui correndo para a rodoviária. Depois de enfrentar uma fila daquelas, e de esperar mais de duas horas, já que o ônibus atrasou uma, recebi a ligação que eu esperava há quase 72 horas. Era o patrão da minha mãe ao telefone. Ela estava bem, estavam todos bem, mas incomunicáveis, sem luz e sem água. Eu já estava na ponte Rio Niterói quando o motorista foi informado que a estrada estava fechada sem previsão de abertura. Voltamos todos para o Rio. No mesmo dia eu recebi um telefonema de uma amiga aos prantos me informando que ela tinha perdido quatro familiares. Dormi dois dias na casa dela. Estar com amigos nessas horas é sempre bom, um ajuda o outro e compreende a dor que está sendo sentida.
Na sexta feira finalmente ouvi a voz da minha mãe, fina e chorosa, mas era a voz dela. O som que eu mais queria ouvir e que aqueceu o meu coração de uma forma que eu nem sei explicar. No sábado, achei que já dava para subir a serra. Mas uma vez juntei minhas coisas e fui para a Novo Rio. Enfrentei uma fila de cinco voltas e quando cheguei no guichê, a moça me disse sem cerimônias, "desculpe senhora, mas nós acabamos de receber a informação de que não podemos mais vender passagens para Friburgo, a estrada está bloqueada". Sabe quando te dá aquela sensação fortíssima de impotência e desespero ao mesmo tempo? Foi isso que aconteceu comigo. Sentei no chão e comecei a chorar, chorei como uma criança, sem disfarçar. As lágrimas escorriam e pingavam na minha blusa. As pessoas passavam e olhavam, incrédulas com o que viam. Bom, quando cansei de chorar, levantei e voltei pra casa. Acho que Deus ouviu as preces que eu fiz no caminho, porque assim que cheguei o telefone tocou, era a minha prima, estava tudo bem e minha mãe estava em casa. Ainda sem luz, água e telefone, mas estava viva.

No sábado mesmo fiquei sabendo das primeiras mortes, minha vizinha de cinco aninhos que morreu afogada na casa da avó, e a mãe de uma amiga que morreu soterrada, depois de lutar contra várias doenças. Dói no coração quando você recebe uma notícia dessas e não pode dar se quer um abraço nos que ficaram, nessas horas a distância machuca e muito. Foi também no sábado de madrugada que os telefones começaram a voltar no meu bairro e eu consegui falar, dessa vez com mais calma com a minha mãe e a minha tia. Só posso resumir esse momento em uma palavra, alívio.
No domingo, fui até a rodoviária Novo Rio, dessa vez não tentei ir pra casa, fui trabalhar como voluntária da Cruz Vermelha, ajudando a enviar as doações para as áreas mais afetadas. Foi bonito ver o quanto ainda temos a capacidade de nos ajudar. Cada garrafa de água, alimento, roupa e até mesmo brinquedos, que colocávamos nos ônibus já simbolizava uma família que teria o que comer ou vestir a noite, e isso representava muito pra gente. Voltei pra casa morta de cansada, super suja e suada, mas com a alma enobrecida e com um orgulho danado de nós, brasileiros.
Bom, na segunda feira, consegui finalmente convencer minha mãe a passar uns dias comigo aqui no Rio e na terça ela chegou. Claro que eu me controlei para não chorar, mas foi difícil, principalmente quando os olhos dela ficaram cheios de lágrimas. Tive que ser ainda mais forte quando ela me disse que pela primeira vez na vida sentiu medo de morrer. Ali eu percebi o quanto eu sou abençoada de não ter perdido nenhum parente, de estarem todos bem.
Sei que eu deveria estar junto dos meus amigos, na minha cidade, ajudando no que eu pudesse. Mas sinceramente, eu não sei se tenho coragem de ver a minha terra, o lugar onde eu nasci e fui criada, a terra que eu aprendi a amar, tão destruída. Covardia? Talvez. Tenham certeza de que nesse momento, estou de luto por todas as vítimas dessa catástrofe, sejam elas conhecidas ou não. Sei que essa triste contagem de mortos tende a dobrar. Só teremos uma lista oficial daqui há alguns meses. Enquanto isso rezo para que tenhamos força e muita luz para reconstruir a nossa Friburgo.
